Sur Lie: O Que é e Como Pode Transformar o Seu Vinho?
Você já leu em alguma garrafa, ou ouviu ao redor dela, a expressão “Sur Lie”. Mas e aí? Qual o significado desta frase e o que ela pode explicar sobre o seu vinho ou espumante?
Para realmente podermos entender como funciona esta técnica de amadurecimento, precisamos compreender exatamente o que são as lias no vinho, já que a expressão Sur Lie pode ser traduzida literalmente como “Sobre as Lias”. Chamamos assim todas as partículas sólidas que se encontram em suspensão no líquido como resultado dos processos de transformação do suco da uva em vinho ou espumante. Podemos nos referir também às lias como simplesmente borras e classificarmos em dois grupos principais: Borras Grossas e Borras Finas.
É importante esclarecer que estas borras são um produto natural do processo de elaboração dos vinhos, em especial, das fermentações que ocorrem para transformação dos açucares e ácidos da própria uva. No grupo das borras grossas ou grosseiras, classificamos as partículas que possuem um tamanho maior (cerca de 0.1 milímetros) e são mais “pesadas” como leveduras e taninos, fragmentos da casca da uva ou da sua semente. Sendo assim, elas precipitam e vão se acumular no fundo do tanque, barrica ou garrafa em 24 horas, aproximadamente. Já a borra fina é representada por partículas muito menores (até 0.001 milímetros ou menos) e composta por leveduras e bactérias naturais da uva que estão ativas ao fim das fermentações e podem levar vários dias para se acomodar junto daquelas lias mais pesadas.
O que é Amadurecimento Sur Lie?
Agora que já sabemos um pouco mais sobre a “matéria-prima” da técnica, digamos que o termo Sur Lie é bem direto, deixar o vinho envelhecer, ou melhor, amadurecer, em contato com as borras que sobraram após as fermentações. Em um processo comum, após a sedimentação dessas partículas sólidas, o vinho seria trasfegado, isto é, transferido, para um novo recipiente e seguiria seu amadurecimento sem contato com as lias, sejam elas grossas ou finas. Na técnica Sur Lie, o vinho segue dividindo seu espaço com toda essa matéria orgânica por períodos que podem variar de 2 meses até alguns anos!
Durante este período, as leveduras que estavam ativas durante a fermentação convertendo açucares em álcool morrem e, com um último ato heroico em nome da enologia, entram em um processo de autólise, onde rompem a parede de sua célula liberando diversos compostos orgânicos ao líquido que vão interagir com os componentes do vinho ou espumante mudando completamente suas características.
A escolha de qual parte das borras, mesmo que geralmente se premie as lias finas, e o tempo de retirada das mesmas é de responsabilidade total do enólogo responsável. É dele a decisão baseada nos seus objetivos com o vinho ou espumante sendo elaborado e até onde deve chegar para extrair o melhor da técnica e elevar as características clássicas de cada produto.
Quais os Benefícios da técnica Sur Lie?
Este sacrifício das leveduras, ao compartilhar compostos com o vinho, permite que um novo, e drástico, processo se inicie, transformando a bebida em vários aspectos, desde seu aroma até a textura no paladar. Alguns dos compostos liberados, como aminoácidos e outros ácidos graxos, são poderosos precursores aromáticos, dando origem à notas de pão tostado, manteiga, nozes e avelã, além de serem fonte de energia para outras leveduras que ainda não entraram no processo de autólise, permitindo que este processo dure por longos meses e até anos após o fim da fermentação alcoólica.
Outros compostos muito importantes são as manoproteínas e polissacarídeos que agem como estabilizadores do vinho, potencializam os aromas e conferem ao vinho um poder muito maior de resistir à ação do tempo e da oxidação natural. Além disso, uma das mais evidentes transformações está no aumento significativo da textura, ou “corpo” da bebida, trazendo uma cremosidade inalcançável sem a técnica.
Quais produtos podem amadurecer Sur Lie?
Considerando que as borras necessárias para realizar a técnica são um produto natural do processo de elaboração de todas as bebidas dentro da vinícola, podemos dizer que qualquer tipo de vinho ou espumante pode ser escolhido. Mesmo assim, vinhos tintos são uma raridade quase exótica devido aos desafios técnicos específicos da natureza destas uvas. Vinhos brancos já possuem maior conexão com a técnica, sendo beneficiados especialmente variedades com afinidade para bom volume, potencial de guarda além de sabores e aromas mais evoluídos.
O grande destaque no emprego desta técnica centenária é, sem dúvida, no reino dos espumantes. Os borbulhantes elaborados pela técnica tradicional, como vimos em outra conversa, já iniciam involuntariamente um processo de amadurecimento Sur Lie, com as borras finas da segunda fermentação repousando gentilmente no fundo da garrafa ao passo que as leveduras passam pela jornada da autólise. Nestes casos o espumante pode repousar por muitos meses até que seja encaminhado para a dégorgement, ter a tampa metálica (corona) removida junto com as borras, ter seu volume complementado e finalmente fechado com a definitiva rolha de cortiça. Em casos especiais, com espumantes de alto potencial de amadurecimento, em busco de sabores e aromas únicos e cremosidade incomum, lotes muito limitados de espumantes sem dégorgement, mantendo a tampa metálica e permitindo que as leveduras sigam seu ciclo lento e transformador mesmo após o fim do trabalho na vinícola.
Tome o Casa Marques Pereira Exitv Anni Sur Lie Nature Vindima MMXVII como exemplo, 36 meses de repouso em contato com as leveduras antes de ser rotulado e seguir para a adega particular de seu comprador, mesmo sem decisão do enólogo, cabe agora ao seu proprietário zelar pelo seu cuidado e decidir o momento exato de a abrir e ter a experiência única de bebê-la. Única. Literalmente única, já que cada garrafa terá o seu tempo particular Sur Lie, aberta em momento distinto, com sabores, texturas e aromas particulares. Cada garrafa encerra uma história sem paralelos, aguardando para ser contada.
2 comentários
Marcio Luz
Prezado Jhonathas. Sou leitor frequente do Blog. Na descrição sobre as borras no caso de vinificação tradicional dos espumantes, notei que vc descreveu que “as borras se depositam no fundo das garrafas”. Me parece que na vinificação tradicional, as garrafas são armazenadas de cabeça para baixo, sofrem rotações frequentes e as borras se depositam no bico, sendo encaminhadas posteriormente para dégorgement, se for o caso. Estou equivocado ?
Marcio Luz
Prezado Jhonathas. Sou leitor frequente dos posts. Me chamou a atenção sua descrição sobre a localização das borras “no fundo das garrafas” na vinificação dos espumantes pelo método tradicional. Me parece que neste método, as garrafas são colocadas de cabeça para baixo e sofrem rotação. No caso, as boras não se aglomerariam no bico da garrafa para, se for ocaso, serem encaminhadas ao dégorgement ?